Uma tragédia do claro e escuro

Informações técnicas:
Dias de Ira (Vredens dag), dir. Carl Th. Dreyer – Dinamarca, 1943 – 97 min.


         Uma habitual definição para Carl Theodor Dreyer é a de que ele é um cineasta do sobrenatural, evidência da qual não se pode escapar, mas que também exige alguns pormenores caso se queira evitar equívocos decorrentes de generalizações. Basta ver que, se nos voltarmos apenas ao cinema de ficção, já podemos encontrar duas maneiras muito diferentes de se lidar com o domínio do anormal. A mais comum é instrumentalizá-lo a partir de objetivos paralelos, que podem ser dos mais variados: o discurso que os realizadores têm em vista, o tratamento exigido por determinado gênero artístico, metáforas para algo que não se pode ou não se quer mostrar explicitamente, e assim por diante. O método de Dreyer é um tanto mais raro, pois busca capturar o próprio fenômeno excepcional – e, para isso, concebe todos os aspectos formais a partir do mistério, se esforça para dar uma abordagem muito frontal a cada tema enigmático, subtrai restrições de tipo fisicistas para conseguir aderir inteiramente ao sobrenatural.

Uma tragédia do claro e escuro - figura 01

        Dreyer se dividiu entre a feitiçaria e o exorcismo, não se recusando à invocação dos demônios, para poder constatá-los reais, mas sendo o primeiro a se colocar à prova diante da urgência de enfrentá-los. Sua composição desde cedo precisou lidar com a ambiguidade entre o diabólico e o divino, sem jamais extrair conclusões imediatas das premissas, optando por vê-las como um modo de aperfeiçoar sua própria fé. Por isso, se seus filmes são permeados de incertezas, não há nelas qualquer traço de apatia cética, só de completa crença nas entidades que quer apreender, tingindo sua obra de uma pessoalidade rara. Temos que tomar cada um de seus filmes como passos, talvez os maiores, no estabelecimento do cinema como meio privilegiado na revelação de nossas mais estranhas profundezas. Em suma: se havia uma invenção técnica comemorada pela sua capacidade de fiel registro, o diretor dinamarquês buscou nela a possibilidade não apenas de captar movimentos exteriores, mas também suas forças motrizes, obscuras aos cinco sentidos.

        Dentro de sua enxuta filmografia, foi em Dias de Ira que Dreyer encontrou o maior equilíbrio entre as forças transcendentes das quais se ocupou, havendo na obra um jogo de pesos e contrapesos que consegue nivelar dois polos a ponto de eles quase se confundirem. O enredo já estabelece de início as imprecisões de seu tema religioso e moral: dentro de um contexto envolvendo bruxaria e inquisições, o drama gira em torno do amor de Anne (Lisbeth Movin), jovem esposa de um pastor anos mais velho, por seu enteado Martin (Lerdorff Rye). Trabalho do diabo? Correção de Deus para o casamento frustrado? Não menos incerto é o dever da regência do sistema moral vigente, fardo que é carregado tanto por Absalon (Thorkild Roose) quanto por Marete (Sigrid Neiiendam) – ela exerce em casa o papel do filho na Igreja. Protetores de todos os males? Carrascos a exercer a real perversidade? O filme é exemplar em dois níveis: primeiro, em conseguir colocar tais questões de forma clara sem precisar discuti-las abstratamente, partindo só da força dramática e concreta que está no coração da trama; depois, em deixar cada personagem descobrir como lidar com tais impasses dentro de sua vivência particular, sem condenação ou salvação de antemão. Por isso, algo de misterioso já está contido na própria realização, no modo como Dreyer dá conta de edificar um maniqueísmo que permeia toda a atmosfera e, ao mesmo tempo, preserva o ser humano de representar uma das duas substâncias motrizes, o bem ou o mal. Mais do que nunca, nos parecerá provado que não há contradição em naturezas antagônicas estarem separadas em um plano suprassensível e fundidas na subjetividade mundana.

Uma tragédia do claro e escuro - figura 02

      Na relação quase incestuosa de Anne e Martin, ambos desenvolvem sentimentos muito diferentes a respeito do amor que nutrem: ela não consegue ver pecado no que faz, enquanto ele acha que deve morrer para pagar por sua paixão. Instaura-se um jogo entre amoralismo inocente de um lado contra a culpa torturante do outro. Nada é indiferente a tal bipartição, da mesma forma que nada é fácil de concluir a partir dela: o mistério está traçado por uma ordem moral que não é nem inerente aos personagens nem imposição do ambiente. Há nos sons e imagens de Dias de Ira algo que, mesmo estando registrado na película, nos chama atenção por sua forma oculta, algo que não está somente fora de quadro ou entre os planos, mas se esconde na superfície visual dos ambientes – o espaço do filme é quase tomado em sentido puro, esvaziado de detalhes para mostrar este invisível que lhe percorre. Nesse sentido, é impactante o uso simultâneo do claro e do escuro, forças que precisam coabitar os mesmos planos, conviver dentro de cada pessoa, pautando a fotografia para o jogo da iluminação do exterior como um reflexo das incertezas interiores, e vice-versa.

        No convívio do branco e preto, é a câmera a encarregada de indicar as reações dos personagens diante das forças que permeiam cada ambiente. Diferentemente de A Palavra e Gertrud, filmes futuros de Dreyer, aqui não se constrói as cenas integralmente com planos-sequência, mas os intercalando com cortes capazes de indicar uma reação sensitiva particular. A interação entre esses dois elementos torna Dias de Ira um evento único dentro da própria filmografia do cineasta.

         Os planos-sequência e planos longos acompanham os percursos lentos da ação, com cada figura humana seguindo o trajeto natural e gradativo rumo ao seu destino, como no curso incessante de um rio – não parece só coincidência que, em um desses planos, o enquadramento se situe justamente em um barco flutuando sobre um pequeno riacho, com Anne e Martin a acompanhar o fluxo natural da correnteza. Os movimentos de câmera estabelecem jogos interiores entre os personagens, comunicados sobretudo através das posições e interações dos corpos, ou seja, a maneira como se sentam, se escoram, as diferentes direções dos olhares, tudo dando à composição um aspecto pictórico barroco, ressaltado ainda mais com os contrastes de luz e a caracterização dos cenários e figurinos para o século XVII. 

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        O contraste entre tipos de planos é importante na medida em que revela a obsessão de Dreyer com o ritmo, sem o qual toda a estrutura dramática desaba e sequer faz sentido. A ideia de interromper continuamento a fluidez das sequencias mais longas com uma montagem que aspira o desconfortável é, por isso, o que configura profundo sentido humano à obra, com cada corte estabelecendo o choque anímico que os personagens sentem diante da inconstância do bem e do mal, e essas reações se tornando tão importante na concepção do sobrenatural quanto os planos de tempo contínuo que criam uma atmosfera nebulosa. A união desses opostos é capaz de configurar uma posição diante do devir, exibindo reações individuais de humanos na vivências seus destinos e, com isso, atribuindo a tudo um profundo estatuto de realidade sensível – a angústia de Absalon, a revolta de Berta, a repulsa de Marete, a volúpia de Anne e Martin.

         Os cortes que saem dos espaços mais carregados (a propriedade da família, a igreja, o pátio da Inquisição) e nos transporta para a tranquilidade da natureza deixam nítido o contraste de dois modelos espirituais. Um encantador exemplo é o corte que, da condenação “feita com a vontade de Deus”, salta para um galho de folhas balançando sobre o vento; em seguida, Anne e Martin desfrutam por pouco tempo daquele espaço amplo e jovial, até surgir novamente a presença humana, através de um camponês que carrega galhos para a queima da bruxa. Mortificação do paraíso que se estabelece gradativamente. Com a evolução dramática do filme, a discrepância entre os dois tipos de ambiente vai diminuindo, com o peso punitivo invadindo o estágio de inocência e, por outro lado, o sentimento mais livre e espontâneo se apoderando da dureza do inquisidor.

         Para intensificar este entrelaçamento que ao mesmo tempo corrompe e purifica, Dreyer recorre a uma montagem paralela entre as cenas de Absalon em seu percurso de fé e as de Martin e Anne desfrutando do amor. A vida vai se introduzindo no primeiro e se esvaindo dos últimos. Chega um momento em que o pastor vai atender a um moribundo e, enquanto presencia o fim de uma vida, fala sobre a fé que é preciso ter sobre a mesma; alternadamente, o jovem casal, mesmo em meio aos estímulos e à vitalidade do meio-ambiente, não se desprende do assunto da morte. Na cena seguinte, Anne mostra a Martin o desenho de uma árvore com apenas uma maçã, pouco antes de declarar que pensa nos benefícios que poderiam trazer a morte do marido – referência clara ao Jardim do Éden, ao passo que leva à distinção do certo e errado. Após esta cena fatal, a presença do jovem casal sob a relva ganha contornos escuros, aparecendo apenas a silhueta dos dois em meio a um campo enevoado e cinzento. 

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         Que a mise en scène de Dreyer é absolutamente cinematográfica (muitos o acusam, e nem sempre de forma pejorativa, de ser teatral) [2], uma única sequência bastaria para deixar bem provado. Trata-se do clímax final, iniciado nos diálogos paralelos sobre a vida e a morte, expostos acima, e que culmina na espera da família pelo retorno de Absalon, até sua chegada e condenação. Dentro do paralelismo que dura mais de quinze minutos, há opções estéticas quase imperceptíveis na criação de uma atmosfera sobrenatural, que são recursos utilizados ao longo de todo o filme e ali condensados com maior furor.

         I) Quando a iminência da morte e da vida se presentifica de forma mais intensa nas duas conversas, os ângulos e distâncias dos enquadramentos se alteram o tempo todo, mesmo com os personagens estando na mesma posição, conduzindo um mesmo assunto. Tudo isso introduz certo estranhamento que nunca é sentido por uma cisão formal muito agressiva, mas que aos poucos vai provendo à atmosfera um caráter enigmático, como culmina nos ataques de vento sofridos por Absalon em seu retorno a casa. Em cenas anteriores, podemos encontrar este tipo de técnica quando há um conflito de perspectivas, como nos cortes que interpõe o olhar de Anne à entrevista que o marido impele Herlofs Marte (Anna Svierkier). Nos casos em que não há esta perspectiva, os interrogatórios são conduzidos em planos longos, sem cortes.

         II) Na sequência em que Anne e Martin esperam o retorno de Absalon, os cortes entre os quais se inserem planos da ventania sempre invertem a posição de Anne – ela está ora para esquerda, ora para a direita. A consumação mórbida de uma quebra de eixo mais radical, que acontece na sequência em que os personagens sucumbem um ao outro e fogem escondidos, representando a ocorrência de uma ruptura divina para o qual não há volta. Um descumprimento de regra (da moral e da linguagem cinematográfica), mas que soa orgânico ao seguir os movimentos genuínos do novo casal. Paradoxos só alcançados na grande poesia.

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         III) Por fim, há toda uma frontalidade que vai ocupando a cena na medida em que o diálogo entre Anne e Absalon vira um vingativo acerto de contas, com o tom dos mesmos interrogatórios antes praticados pelo marido. Anne condena Absalon à morte quase no mesmo plano e contraplano usado nas sequências de Herlofs Marte na igreja e, depois, aos pés da fogueira, com um personagem posicionado acima do outro, a câmera bem em frente aos seus rostos. Parte disso é reiterado em outros momentos pelo olhar mais forte e julgador de todo o filme, que é o da mãe do pastor.

         A construção estético-dramática de Dreyer torna bem possível pensar que seu interesse pelo sobrenatural se alinha plenamente a um interesse pela essência da tragédia. Todos os personagens possuem vida própria, têm posições a respeito das coisas e, portanto, estão sujeitos a enganos e incompreensões. É bem visível no filme o tripé qualitativo do modelo trágico aristotélico (peripécia, reconhecimento e catástrofe), que se edifica justamente mediante aqueles pressupostos de pensamento e caráter dos personagens [3]. Cabe notar que até elementos menores como o coro (as crianças cantando), prólogo e epílogo (escrituras) fazem parte do arranjo dramático.

         A personagem trágica por excelência é Anne, sempre a variar entre o semblante alegre e o desespero. No início da história, é ela quem tem coragem de dar refúgio a Marte, mas também quem não consegue segurar o olhar voluptuoso ao enteado. Está introduzindo na casa compaixão ou feitiçaria? Depois, chora com a bestialidade da morte da suposta bruxa, mas sua comoção logo vira cobiça ao ouvir do marido sobre os poderes que a morta teria. Depois de todo o amor consumado com Martin, é condenada por ter usado artifícios do demônio, e assume tê-lo feito: olhando o cadáver do marido no caixão, brota o arrependimento verdadeiro, o pela morte pensada, talvez causada? Lágrimas e sorriso se unem pela primeira vez em seu rosto.

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         A purificação de Anne na cena final é estampada em dois elementos que são únicos ao longo do filme: o figurino inteiramente branco [4] e o plano que isola a personagem em sua fala, sem a interrupção ou perspectiva alheia. De esposa à bruxa, de herética à santa – triste passagem ascética, enquanto os demais personagens retornam ao ininterrupto ciclo da ira. Nesta comparação entre os destinos recai todo o mistério da obra. Se, por um lado, Dreyer nos dá certeza de que a dor e sofrimento é a única constância deste mundo, também mostra que sempre haverá em seu fundo uma outra coisa na qual se transformar. 

         De alguma forma, a primeira cena de Dias de Ira já apresenta toda a identidade da tragédia a se seguir: Marte, perseguida pela Inquisição, ouve vindo de fora de casa ameaças contra bruxaria, o que a leva a atravessar todo o indefinido preto e branco do local em busca de uma saída que a salve. Cada personagem buscará seu caminho em direção a esta tão improvável redenção. Como sempre fez e fará, Dreyer abraça todas as motivações como legítimas, de forma que o embate moral e religioso apenas segue seu caminho inevitável, para assim atingir o efeito trágico mais elevado – o da derrota terrena de pessoas nem tão más, nem tão perfeitas, mas sobretudo humanas. Nada pode parecer mais sobrenatural do que esta condição.

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NOTAS:
[2] Sobre esta disputa, o próprio Dreyer confirma sua posição entre cinema e teatro aqui. Um parágrafo que reitera meu enfoque: “o que é característico de um bom filme é uma certa agitação rítmica que é feita, sejam movimentos dos personagens no interior dos planos, sejam mudanças mais ou menos rápidas no plano. No primeiro caso, é importante ter uma câmera viva e móvel que siga com destreza os personagens, mesmo a partir de um primeiro plano, de forma que o cenário de desloque sem parar – como acontece com o olho quando nosso olho segue uma pessoa. No que diz respeito às mudanças dos planos, é importante, na adaptação de uma peça de teatro, que aconteça, ao curso de cada ato, tantas coisas ‘fora’ da cena quanto ‘na’  cena, o que poderá fornecer material a novos elementos rítmicos“.
[3] Peripécia é a mutação dos sucessos no contrário. Reconhecimento é a passagem do ignorar ao conhecer. Catástrofe são as ações dolorosas, como mortes e sofrimentos, pioradas quando ocorre no seio de um círculo afetivo. Caráter é o que revela certa decisão, o fim preferido ou evitado. Pensamento é demonstração de algo ou enunciação de uma sentença.  Para mais detalhes, ver cap. VI (§ 30-36) e XI (§ 60-64) da Poética. Recorro aos termos utilizados na tradução de Eudoro de Souza.
[4] Vale notar que o figurino de Marete fica inteiro preto após a morte do filho. Absalon, ao longo da narrativa, varia um pouco: até a morte de Harlofs, ele utiliza uma vestimenta branca no pescoço (gorgeira; gola rufo); depois, fica inteiro de preto novamente diante das dúvidas que adquire no novo contexto; e volta a usar o branco após se contentar com os sorrisos da esposa e, de forma ainda mais nítida, quando vai preparar o moribundo para a morte.

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