O desprezo entre o passado e o futuro

Informações técnicas:
O Desprezo (Le Mépris), dir.
Jean-Luc Godard – França & Itália, 1963 – 103 min.


        Ah, Godard, o múltiplo e imprevisível Godard. Agora, em ocasião dos noventa anos completados pelo cineasta, havíamos de escolher algum caminho para reencontrá-lo, e minha opção foi pela revisão de O Desprezo, sua obra que considero mais fascinante. A escolha se deu pela evocação de um documentário sobre o filme [1], especialmente pelos trechos em que aparece o próprio Godard (ali, já bem próximo da casa dos oitenta) assistindo a algumas cenas do seu antigo trabalho com um olhar distante, inacessível. A lembrança mais sólida que acaba compartilhando sobre a realização é que, durante ela, dizia para si próprio não saber o que era o desprezo. Ele colocava então em prática o que havia escrito sobre outro diretor: “estar só, é fazer perguntas. E fazer filmes, é respondê-las” [2].

O desprezo entre o passado e futuro - figura 01

         Os ângulos buscados para tocar as angústias sobre o desprezo são diversos: existe a tensão nervosa da criação cinematográfica, a relação amorosa sendo corroída pelo ciúme (ou ausência dele) e interesses egoístas, o resgate da jornada homérica como eterno modelo sobre as formas de estar no mundo. É um filme em que a concorrência amorosa de um triângulo se confunde com as próprias disputas da criação: o roteirista Paul Javal (Picolli) se encontra em um impasse ao aceitar a encomenda de uma adaptação da Odisseia, motivo do afastamento afetivo de Camille (Bardot), que precisará conviver com a presença do produtor endinheirado Jeremy Prokosch (Palance). A Odisseia faz parte da trama, mas também é a própria trama: mais uma vez, Ulisses parte para uma guerra da qual precisa retornar, e Penélope fica abandonada entre a fidelidade ao marido e os novos pretendentes. A partir daí, toda a série de diálogos ácidos, olhares sugestivos, de comportamentos banais que mostram um casal no desespero por reconquistar um ao outro.

         A partir de duas teorias de Fritz Lang [3], parece se estabelecer uma oposição entre a tragédia e o mundo de Homero: enquanto Ulisses compreende o real e o vence pela sagacidade, o personagem trágico evidencia a derrota humana para as circunstâncias objetivas. Lang e Paul fazem uma exaltação da primeira forma, mas Godard destaca a segunda, pois na sua releitura da Odisseia, o destino de Ulisses e Penélope é invertido, a união se torna impossível, ao menos naquele momento. Não seria exagero ver na personagem de Bardot a própria figura da arte cinematográfica – seu amor pelo roteirista passa a diminuir justamente após ela se sentir como um objeto jogado às mãos do produtor ganancioso, momento a partir do qual sua morte parece já anunciada. O trágico culmina no momento de sua fuga com aquele, a carta de adeus ao antigo amor (obsessão de Godard) e, em seguida, a morte. O acidente indicando uma impossibilidade, documentando um fechamento de ciclo? Seria tudo um prenúncio da futura cartela ‘fim do cinema’, como aparecerá em Week-end cinco anos depois?

O desprezo entre o passado e futuro - figura 02

         O uso das cores no filme indica uma série de camadas abstratas por trás da superfície da narrativa. Focando apenas no embate entre o azul e vermelho, já é possível estabelecer várias relações. Vermelho é a cor da gravata do produtor, do seu carro, do exterior de sua sala de exibição, de um mundo violento que invade o ambiente doméstico dos protagonistas – no apartamento do casal, são vermelhos o sofá onde ocorrem suas principais discussões, a poltrona onde o Paul se senta para o novo trabalho e a própria capa da edição da Odisseia usada para a adaptação. O azul, por sua vez, está na gravata do roteirista, no interior da sala de exibição, no sofá da casa na ilha de Capri, de onde se contempla o oceano, nas únicas poltronas do apartamento em que o casal tenta conversar mais amenamente. A partir disso, dois pontos geniais:

         I) Camille fica entre as duas cores desde o início do filme – na primeira cena, a iluminação é vermelha enquanto ela questiona Paul sobre a beleza das partes do seu corpo; mas no momento em que passam a falar sobre seu rosto e o amor, a fonte de luz altera abruptamente para azul, e o marido declara amá-la ‘tragicamente’. No meio do filme, quando a relação de ambos está no ápice dos conflitos, logo após ela anunciar desprezá-lo, Paul corre desesperado atrás da mulher e a alcança dentro de um táxi cujo revestimento do banco é um xadrez vermelho e azul. Por fim, na cena da morte, Camille veste o azul da tragédia dentro do carro vermelho. Incrível toda a dramaturgia das cores que se organiza em torno dos personagens e seus ideais – valeria um texto analítico focando apenas neste aspecto. 

         II) Na exibição do material da Odisseia que Lang está filmando (o filme dentro do filme, como a peça dentro da peça em Hamlet, com penetração dramática autônoma, mas visando desmascarar aqueles que a bancam e assistem), os olhos de Minerva, protetora de Ulisses, estão pintados de vermelho; enquanto os de Netuno, seu inimigo, estão azuis. A concentração direcionada ao que ambos enxergam como potencial ameaça? Em seguida, a fúria do produtor e a contratação de Paul como roteirista. E quando Camille vai à casa de Jeremy, entra um plano da estátua de Apolo se interpondo à corrida desesperada de Paul; já quando ela retorna com o marido, um plano da estátua de Minerva.

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         Afinal, sobre qual desprezo tratou Godard? O de Paul por Camille? Mas é ela que verbaliza desprezá-lo, ferida exposta da relação sentimental. O desprezo do cinema pelo artista? E a resistência tem qual sentido dentro de determinado modelo? A arma que Paul pega após ouvir ser desprezado é descarregada pela mulher quando a mesma foge com Jeremy. É o desprezo do próprio Godard pelo contexto de grandes estúdios arruinados, com diretores como Lang sendo pressionados para mudar o caráter de Ulisses de acordo com o padrão do “neurótico homem moderno”? Resta a homenagem estampada em pôsteres nas paredes, nas sessões anunciadas pelos jornais: Rossellini, Hitchcock, Hawks, Losey, Nicholas Ray, que não são apenas referências incontestes para o diretor (que buscava uma síntese entre suas formas), mas se tornam também a Ítaca daquele contexto representado, aquilo que tão rapidamente se tornava objeto de nostalgia. 

         O jogo com as apropriações indica essa relação fragmentada e incerta com o universo que se está trabalhando. Por exemplo: em determinada passagem, Lang recita Hölderlin para dizer que era a ausência de Deus que tranquilizava o homem; em outro, lembra Brecht para se autodenominar criticamente como um vendedor de mentiras. Godard parece encontrar no segundo a saída para alcançar o primeiro, um caminho de reconhecer os artifícios mais verdadeiros da mentira com um objetivo diferente daquele dos deuses dos estúdios [4]. Cria um mundo sinestésico, no qual se destacam os travellings que acompanham a verdade íntima de um casal, o formato Scope que transita em panorâmicas dentro de internas reais, as cores de melodrama usadas em discussões cruas ou exibindo ruínas dos estúdios, a música operística de Delerue que busca presentificar o espírito grego numa cultura de arte industrial.

         No final das contas, Paul abandona o roteiro da Odisseia e perde a esposa, mas Godard dá continuidade ao que foi aprendido na jornada do personagem. Na cena final, em que Lang filma o reencontro de Ulisses com Ítaca, o diretor alemão acompanha com sua câmera o personagem homérico olhando o mar, mas logo Godard avança um pouco, desvia do enquadramento as mediações por trás da câmera, abandona o próprio personagem, e nos deixa apenas com o oceano e o céu aberto, fundidos em um só azul. Por mais bifurcados que sejam os destinos dos protagonistas de O Desprezo e do cinema em si, o espectador deve desembocar na mesma angustiante imensidão azul em que termina Godard, o azul de amar totalmente e tragicamente. O oceano traz à tona a reflexão pelo futuro da viagem cuja continuidade cai agora em nossas mãos, bem como a nostalgia por uma terra natal cada vez mais inacessível – é como na fala de Paul, “e nossa alegria se transforma mais uma vez em pranto, até que o mar se feche sobre nós” [5].

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Notas:
[1] Documentário Era uma vez… o desprezo (2009, dir. Gaudemar).
[2] Texto Bergmanorama, escrito por Godard em 1958 para Cahiers du Cinéma, tradução de Artur Ianckievicz para revista taturana (disponível aqui).
[3] A primeira é a leitura que Bardot faz de um livro estampando Lang na capa (não sei se escrito por ele ou se por outra pessoa); a segunda, na saída do teste de audição numa sala de cinema, em conversa entre o próprio Lang e Paul. Essas discussões sobre a diferença entre epopeia e tragédia já existem desde os tempos gregos, incluindo outros motivos que não a conduta do personagem, mas estrutura da trama, a forma pela qual se constrói, efeito dramático, maneira de expôr ao público, etc. 
[4] Enquanto assiste ao material da Odisseia filmado por Lang, o produtor Jeremy diz gostar dos deuses e saber exatamente como eles se sentem. 

[5] Citação de Dante feita pelo roteirista no momento em que acompanha a exibição do material da Odisseia filmado por Lang.

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