A nação evaporada

Informações técnicas:
Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America), dir. Sergio Leone – Itália & EUA, 1984 – 229 min.
[1] 

A memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte.” [2]


       Pode-se assistir a Era Uma Vez na América dezenas de vezes, a sensação diante do congelamento do último plano permanecerá sendo um eterno enigma. Quantas possibilidades nos são abertas para o que foi visto, para o que deverá ser revisto? – o subir dos créditos finais é um encerramento de ciclo que, imediatamente, já nos lança um convite de retorno. Inclusive, será que algum outro filme deixa transparecer tão claramente esta necessidade de revisita às obras, ainda que seja uma justificativa tão básica para qualquer apreciação artística? Cada revisão é como um chamado instintivo, um ato de fé pelo cinema, de forma que partirá do princípio errado quem quiser agir igual a um perito em busca de algo a decifrar, traição à procedência simples e direta da obra. O caso, aqui, é que lidamos com o tempo em seu estado puro, uma experiência que almeja a conquista do todo, que emerge de uma memória involuntária ao estilo proustiano, um passeio pelo incessante trânsito dos anos, dias, segundos, a tudo engolirem enquanto nada compreendemos. 

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Chaves para o passado

      Quando Noodles (Robert De Niro) [3] ressurge pela primeira vez a um antigo amigo, sua aparição é fantasmagórica, uma silhueta que emerge em meio à bruma exterior para ingressar no antigo espaço afetivo que lhe foi vedado por décadas. O telefone possui um sentido duplo como caminho para tal retorno. A primeira aparição do protagonista se dá com o ressoar dos toques de uma antiga ligação, a evocar toda a aflição labiríntica pelos erros do passado; depois, a porta dos fundos para este mesmo passado é aberta graças a uma nova chamada telefônica, sem mais a agressividade sonora de seus ringues, mas com a graça reparatória da música de Ennio Morricone. A voz distante de um trauma que, aos poucos, passa a ser encarado frontalmente.

       A origem do impacto em que tudo se inicia é carimbada já na primeira cena, com o susto causado pela pancada na fotografia de Noodles, o alvo já bem sinalizado. Som alto de estilhaços, três capangas de poucas palavras e o desencadear de um fluxo atordoante nos próximos vinte e cinco minutos, ao estilo das aberturas de Sergio Leone, incluindo mortes, torturas e perseguições. Nesta ocasião, não se tratará de lembrança, mas de vida em desordem, de busca pela fuga e pelo esquecimento. Apenas mais tarde, no reencontro com Fat Moe (Larry Rapp), algumas velhas fotografias farão Noodles reincorporar sua vida pretérita, algo concretizado na própria repetição de um antigo gesto: subir na tampa do vaso sanitário para espiar Deborah (McGovern / [Connelly, nesta cena]) praticando balé. Por mais de três décadas, tudo o que fez foi esperar a oportunidade de poder renascer pela recordação, algo preferível a qualquer coisa tangível do novo mundo em seu entorno. Não à toa, permanece a se deslocar na velhice com as mesmas roupas que vestia quando adulto, nos anos 1930 – na sequência da bilheteria da estação, que marca sua fuga e retorno a Nova Iorque, sua constância nos é alertada justamente pela fidelidade ao chapéu e ao robusto sobretudo de linho grosso. Entre um período e outro, só houve um longo pesadelo? 

A nação evaporada - figura 02

       Parecido com uma cosmogonia, a tentativa de alcançar uma ordem decorre de um princípio caótico, como se Noodles nada mais fosse do que um dos pioneiros a harmonizar a experiência confusa de um período originário, remontando assim a trajetória de seu país, como o próprio título já anuncia. Porém, diferentemente das ditas histórias oficiais, nada há de lógica causal na remontagem desse ciclo, pois Leone é um declarado fabulador, que não desdenha dos fatos, mas sempre buscou ultrapassá-los, mirando em cada dado registrado várias paixões, sonhos, vidas concretas. Somos guiados pelo fluxo emocional de Noodles, cuja busca pela reconstituição de si mesmo reconstrói os ideários americanos a partir da seletividade de sua própria memória. E dado que lhe arrebata tanto o luminoso quanto o sombrio (e, principalmente, a mistura de ambos) [4], o filme escapa da armadilha de dividir o período retratado em um lado correto e outro errado, numa suposta objetividade retrospectiva. Era Uma Vez na América se pretende mais uma incursão onírica pelas várias facetas da nação-título, único caminho para uma consciência totalizante e profunda da mesma.

       Para este tratamento, o salto fundamental que o diretor dá em relação aos seus trabalhos anteriores está no uso de exposições temporais em blocos. Não que se abdique de uma cronologia organizada, algo que é até bem evidente a partir do momento em que as lembranças de Noodles vêm à tona, bem como no seu itinerário após o regresso à cidade – são paralelas, mas cada qual avança de modo contínuo. Apesar de muito se falar sobre a não linearidade do roteiro e concluir disso que há no filme uma estrutura complicada, toda a exposição é bastante inteligível. São apenas nove invertidas temporais em um total de três horas e cinquenta minutos, sendo que as únicas duas que quebram a progressão linear são a elipse com a volta de Noodles ao som de Yesterday e o encerramento que regressa à casa de ópio. Não é mentira que o recurso das antecipações e retrospeções poderia ser fonte de confusões desnecessárias caso o meio fosse tomado como fim, mas aqui o uso é tão firme e preciso que eles acabam por ser a maior força da narração, permeando a estrutura de variantes de ideias e sentimentos para, deste modo, estabelecer o contraste de vivências e aspirações entre os três diferentes segmentos (adolescência, maturidade e velhice) [5]. Aos poucos, a completude das várias partes específicas constrói, em um espaço de menos de meio século, dois mundos gritantemente distintos. O “era uma vez” do título, que em um primeiro momento indica a abordagem fabular, aos poucos também revela a distância em relação a um país cada vez mais afastado de seu imaginário fundador.

         Noodles recebe as chaves para passear entre esses mundos. A primeira, do relógio que será religado no bar, instaurando o tempo cronológico que vai ditar o ritmo das memórias de infância. A outra, para o antigo armário da estação, que se encontrará cheio de dinheiro a tentar comprar uma dignidade tardia, mas só possuindo algum valor efetivo por abrir as recordações da fase adulta, justamente a mais abundante que veremos. E existe a chave da derrota, que ele leva ainda nos primeiros minutos do filme, na tentativa de resguardar seu futuro, sem saber que outra pessoa havia ali se antecipado. O difícil de saber é se o país do segmento ulterior, situado em 1968, já estava contido nos dois primeiros, que enfocam nos inícios das décadas de 1920 e 1930. De certa forma, essa suspeita é externada pelo próprio filme, quando Fat Moe diz que sua irmã Deborah se tornou uma grande estrela, e Noodles reage de duas formas distintas: na resposta imediata, não há espanto, pois os vitoriosos seriam mesmo reconhecidos na largada; depois, bem mais próximo da conclusão, quando a mulher é revista e comparada com a imagem que ele dela guardava, um novo olhar não consegue reter a hesitação. A vida que emerge entre os dois encontros a nos questionar se o trajeto da esperança está impelido a tal destino. 

A nação evaporada - figura 03

As mil faces de um país

         No momento em que os cinco amigos, ainda adolescentes, vão compactuar sobre o reparte de suas riquezas e vidas, é Noodles quem hesita. Por certo, seu paradoxo é não aceitar o futuro na mesma medida em que consegue antevê-lo. Ele é o primeiro a perceber o risco no jogo de traições em que a gangue vai se enredando, e do qual Max (James Woods) acaba por se tornar a derradeira vítima muitos anos depois. Contudo, todo esforço para refrear o porvir é inútil, e este é o motivo de seu drama: diante do inevitável, sua vinculação sentimental com os próximos não lhe permite um abandono por meio de cálculos racionais, o dispondo antes ao sacrifício nas piores conjunturas – a prisão após a morte de Dominic (Noah Moazezi), a delação diante do risco de vida dos colegas.

         A mais profunda amizade estabelece também o maior embate entre valores: Max só pensa no que está sendo ganho diante de cada nova conquista do grupo, enquanto Noodles se retém muito mais ao que pode estar sendo perdido. Será apenas o tempo que continuará a prendê-los do início ao fim – a relação nasce com um relógio roubado e termina com o mesmo objeto sendo sacado no encontro final. Na última cena juntos, Max busca um acerto de contas como meio de atribuir mais dignidade ao seu futuro (uma morte digna), ao passo que Noodles fará o itinerário inverso, mostrando-se incapaz de se envolver na nova conjuntura devido à recapitulação da beleza do que viveram juntos, dos sonhos compartilhados. A redenção do filme encontra seu lugar mais comovente e luminoso no plano que desfoca um revólver e cede espaço a uma sequência de imagens da infância [6]. 

         Um parêntese especial para a dupla de atores masculinos, igualmente memoráveis, ainda que de formas levemente distintas. São trabalhos que apostam em variações mínimas e que conseguem ser de absoluta clareza sobre os dilemas internos em cada contexto, mesmo sendo as variações de Robert De Niro qualitativas, enquanto as de James Woods são quantitativas. Leone aproveita o olhar e o gestual de Woods, que lida com uma contenção sempre na iminência do descontrole, e o faz explodir de vez nas situações em que De Niro ostenta seu espírito indomesticável e zombeteiro ao colega. Afinal, Noodles pode ser apaixonado, brutal, sarcástico, sonâmbulo, e qualquer um deles irá ditar ou absorver a tonalidade da cena, e nela se sentirá plenamente à vontade. Já Max é um só, uma curva que ascende e despenca com a mesma avidez de quem quer dominar seu círculo, mas nem sempre consegue.

A nação evaporada - figura 04

         Para demarcar os campos de atuação dos personagens do filme, uma dupla perspectiva é necessária. O trio protagonista é concreto e abstrato, pois suas nuances psicológicas são bem delineadas, mas elas refletem a complexidade de um coletivo historicamente localizado. O restante das demais figuras ainda são coerentes nas tramas que apresentam, só que mais delimitados a uma ideia de algo, com uma função simbólica colocada de modo mais direto. Que o objeto que representam é o país em que tudo se passa, não há dúvidas – qualquer uma seria refutada apenas com o ecoar da canção patriótica God Bless America na abertura e encerramento do filme. Por isso, se todas as ações apresentadas são plausíveis pela ótica dos impulsos humanos, devem ser vistas em suas profundezas como dimensões americanas: há a encantada, a farsante, a festiva, a soturna, a predatória, e assim por diante [7]. Aos poucos, todos esses polos vão se unindo e mostram-se mais vinculados do que se pode imaginar. O próprio núcleo principal dos colegas judeus não depende da dosagem correta entre sordidez e lealdade, sem a qual tudo foi desfeito?

         Dentro dessas ambivalências, dois aspectos são dignos de um desvio para rápida menção. Primeiro, o modo como há no segmento dos adolescentes uma união entre a descoberta do prazer com certa sujidade: a fuga do mundo nos banheiros sujos, com as paredes descascadas, brilhando de gordura; aglomerações de pessoas pelas ruas, permeadas de suas vendas abertas, bichos passando livremente, os trapos que as crianças vestem; ou ainda a famosa cena do garoto esperando para comprar os serviços da vizinha com um doce de creme que ele mesmo acaba comendo, sentado no chão da escadaria empoeirada. A outra coisa é o grande senso de humor de Leone, que ganha contornos didáticos para alguns pontos delicados: a figura patética do sindicalista quando sem o apoio sujo para lhe resguardar; o modo como os detentores do poder se divertem escolhendo os destinos individuais (o plano do assalto, a troca dos bebês); os discursos públicos e privados do policial (Danny Aiello), à vontade para brilhar em seu carisma demagógico, levando cada palavra a ricochetear contra si próprio. Até mesmo a escolha do caminhão para fechar o ciclo do enredo, quase numa vestimenta fascista em seu preto e vermelho e com um zoom-in exibindo o lixo sendo triturado, não deixa de ser um grande olhar sarcástico para os pactos do progresso, a despeito de toda a melancolia envolvida [8].

       Contudo, nada assimilará melhor o romantismo frustrado de um país do que a sequência do jantar. Lá, Noodles avisa Deborah sobre a identidade que ela resguarda com Max, mas também faz declarações almejando conquistá-la, algo impossível pela própria diferença de aspirações que ele havia acabado de constatar. Retornando para casa após a negativa da mulher, recorre à sua brutalidade até ali ocultada para conseguir ter o que deseja. De um encontro à beira-mar cuja beleza era até excessiva, salta-se para a mais aflitiva cena do filme, que depois ainda desemboca em um caminhar melancólico do protagonista pela orla da praia. Mais uma vez, Noodles estava correto na previsão contra a qual lutou, como as sequências seguintes indicam: veremos Max sistematizando mulheres que seu amigo só havia alcançado pelo estupro, sendo uma delas Deborah, cujas pretensões egocêntricas serão enfim atendidas. Entre os oceanos do encanto e da desolação, uma perpétua violência, a mesma que revela sonho e pesadelo à distância de um corte.

Era Uma Vez na América - Encantamento e violência

Tempo redescoberto

         Finalmente, entramos na discussão mais conhecida a respeito da obra, inevitável logo após seu término: a trajetória de Noodles foi ou não apenas uma quimera, um grande giro pela América a partir do efeito do ópio consumido? Há alguns elementos que reforçam esta teoria [9]. O mais direto talvez seja o uso de algumas transições que deliberam pelo extravagante, como a cena do disco lançado em direção de Noodles enquanto ele caminha sob a ponte, ou mesmo o caminhão de lixo que engole Max e logo volta em forma de carros dos anos 1930. São momentos como uma espécie de desconfiança que se pode ter dentro do próprio sonho, muitas vezes nos levando a despertar. Além disso, ainda que de modo mais sutil, o arranjo sonoro também poderá revelar certa condição onírica do filme. Basta vermos como a música de Morricone é base para o percurso das impressões que recebemos [10], podendo ser variável na abordagem de cada uma das cenas, mas também capaz de criar uma unidade sentimental para ocorrências distantes. Sem abalo, podemos passar rapidamente do mistério para o nostálgico, depois para o burlesco, o dramático, o suspense, e outros tratamentos – Fat Moe pede para a banda do bar mudar de música quando tenta criar um clima romântico para Noodles e Deborah, rompendo as piadas e risadas que transbordavam até então, mesma função que a mixagem exercerá sutilmente em cada sequência. De forma contrária, emoções são compartilhadas com anos e milhas de distância separando quem as transmite – o epitáfio “seus mais jovens e fortes sucumbirão pela espada”, a unir os olhares de Max adolescente e de um Noodles já envelhecido, sob o mesmo peso do luto [11]. Nesta sucessão desconexa ou desconexão sucessiva, ambas experimentadas tão congruente e devotamente, pode haver algo mais profundo a aprendermos sobre o estatuto das coisas: a descoberta de que questões sobre sonhos são aplicáveis também a vida.

               No último plano do filme, antes do célebre sorriso de De Niro, há entre nosso ponto de vista e seu personagem um véu que se interpõe, uma barreira que some apenas com o desfoque causado pela aproximação da câmera. Pode ir o cinema além desta pretensão, isto é, apostar em algo que supere sua magia de desvendar o véu das ilusões? Chegado o instante em que se assume com carinho este misticismo, nada sobrará a nós senão o espanto, a necessidade do silêncio diante do incomunicável e, claro, algumas perguntas irresolúveis. Afinal, sendo a história focada em um núcleo judeu, por qual razão a casa chinesa, com suas estátuas de budas, com sua arquitetura a aparecer atrás de Noodles bem na cena em que ele assiste ao infeliz destino de seu amigo? No fim das contas, nossa única saída é renunciar a questão que empareda o filme entre sonho e realidade – para absorvermos algo, não parece melhor que se viva o percurso depois que as perguntas esgotam seu sentido? É este o desencadear do sorriso, uma força sintética que compreendeu plena e intuitivamente aquilo que somos, algo que só tem valia ao lado de cada mínimo detalhe do que foi presenciado. Como em um mito do eterno retorno, Noodles aceitou integralmente os males e bens desta vida. Só não saberemos se seu deleite final é por recomeçar o que foi vivido, ou por libertar-se de vez dos erros da história, rindo de nós que aqui ficamos. 

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        Diante do término de Era Uma Vez na América, haverá alguém capaz de sair sem uma grande rachadura nas antigas concepções que se tinha sobre o tempo? A escolha do universo gângster é só a tentativa de traçar com cuidado a imagem dos Estados Unidos a partir de um tema tão cinematograficamente seu, mas o que interessa realmente é o modo de descortinar um passado, as gruas que transitam entre o geral e o particular, o tratamento cuidadoso tanto com o pequeno quanto com o grande evento, igualmente irresistíveis. O Leone diretor, assim como Noodles, sempre foi movido pelo cheiro das ruas, das pessoas, com seus trapos e dores. Cada reconstituição é feita de modo tão detalhado, e cada detalhe é vivificado por tamanha paixão, que viajamos por datas que nunca foram as nossas. Porém, muito mais do que apenas experimentarmos cada um dos tijolos de uma nação perdida, o importante é a reconquista de um olhar para o tempo, este que sempre foi visto como o único inimigo a nos atacar enquanto foge, mas que Leone mostrará ser um amigo que nós traímos. Como nas velhas acusações tão frequentemente replicadas, será mesmo o tempo apenas aquele que não nos perdoa?

          Se for dever do artista estar lá registrando o que se tornará nos livros um passado rígido e distanciado, e depois nos oferecer uma amostra mais vívida de sua época, podemos dizer que Leone cumpre sua função e vai além. Mais do que materializar com perfeição um ciclo específico, ele também mostrou a evaporação daquele mundo, e nisso sequer pode nos intrigar a existência de tanta fumaça em várias cenas do filme – ela surge em excesso nos momentos de transição mais demarcada, como no já citado retorno de Noodles ao bar de Fat Moe ou então na partida de Deborah na estação de trem, mas também permeia sutilmente os becos, avenidas, fábricas, chaminés e até mesmo pontos das locações internas. Assim, se redescobrirmos uma postura que nos eduque a lidar com o passado, olharemos para nosso próprio presente como para aquela matéria em dissolução, a desfazer pouco a pouco os velhos véus e fantasmas do tempo. E em um futuro não muito longínquo, diante das ruínas que fatalmente nos esperam, poderemos sorrir e ver reerguido um mundo de sonhos.

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NOTAS:
[1] Trato aqui da versão mais acessível e propagada, mas sei que existem mais duas. Uma feita para a distribuição nos Estados Unidos, mutilada por cortes e reordenação das cenas, com duração de 139 minutos. E outra que foi acrescida de algumas cenas inéditas, versão exibida em Cannes no ano de 2012, somando 250 minutos no total.
[2] Trecho do ensaio O Narrador, de Walter Benjamin (em Obras escolhidas vol. 1, ed. Brasiliente, 1985, p. 210). Tradução de Sergio Paulo Rouanet.
[3] A maioria dos personagens também são retratados em sua adolescência. Porém, para limpar o excesso de informações, coloco apenas o nome do elenco adulto, com exceção dos momentos em que me referir a um personagem ainda na fase juvenil. Ainda que seja algo nítido a quem assistiu ao filme, não custa ressaltar que o núcleo de atores menores é encantador.
[4] Em uma entrevista após o lançamento do filme, Leone diz: “America speaks like fairies in a fairy tale: ‘You desire the unconditional, then your wishes are granted. But in a form you will never recognize.’ My moviemaking plays games with these parables. I appreciate sociology all right, but I am still en­chanted by fables, especially by their dark side“. Texto completo aqui.
[5] A diferença fundamental entre Era Uma Vez na América e os trabalhos em que Leone já havia adotado uso de saltos temporais, é que aqui toda a estrutura é erigida apenas graças às variações entre diferentes pontos do tempo, enquanto nos outros havia flashbacks como potencialização de um mistério (Por Uns Dólares a Mais Era Uma Vez no Oeste) ou como contrastes de emoções muito mais pontuais (Quando Explode a Vingança). Não à toa, Era Uma Vez na América foi um fracasso em sua versão totalmente linear, pois foram perdidas certas características que só fazem sentido dentro de determinado momento do filme. Sobre a riqueza deste aspecto temporal do filme, ainda cabe trazer um reforço teórico do filósofo brasileiro Benedito Nunes: “quando minuciosamente analisadas em cada caso concreto, percebe-se que as antecipações e retrospecções diferem entre si quanto ao seu alcance (o período de tempo que ocupam a partir do momento em que começam) e a sua amplitude (a duração do evento que introduzem, alcançando ou não o evento principal), podendo interferir ou deixar de interferir, pelo aporte de um novo conteúdo, com a “narrativa primeira”, cujas lacunas servem, também, para completar.” (O Tempo da Narrativa, ed. Loyola, 2013, p. 31)
[6] O plano de Noodles sentado e olhando para a arma é similar ao de Era Uma Vez no Oeste, quando Harmonica (Bronson) aguarda Frank (Fonda) para o duelo final – revólver em primeiro plano, com seu cano apontado em nossa direção, personagem logo atrás. Depois, ainda veremos semelhanças em : I) os close-ups que nos levam às memórias. II) Exibição dos motivos da vingança e do perdão. III) Os protagonistas saindo pela porta após cumprirem seu chamado. IV) Os veículos (trem e caminhão) que chegam para anunciar novos mundos, a apagar os rastros do que ali se passava até então. V) A contraposição das imagens finais, com o povo chegando ao oeste para a construção de um futuro e, em Era Uma Vez na América, de carros antigos evocando ainda o passado. Enfim, se nos westerns a única solução era através da disputa pelo gatilho, aqui é pela recusa do mesmo, o que pode ser visto uma redenção não só do percurso do filme em específico, mas de toda a fábula americana de Sergio Leone. Lado a lado, os encerramentos de ciclos apresentados em cada filme aqui.
[7] Para se aprofundar no tópico sobre a abstração em Leone, mas com enfoque mais voltado aos seus westerns, recomendo o artigo “Neste mundo existem dois tipos de pessoas, meu amigo…”, que pode ser lido aqui.
[8] Ainda que seja um ponto secundário, com certeza as datas escolhidas para as épocas não são gratuitas: os personagens judeus morrem em 1933 e o mundo ao avesso de Noodles se situa em 1968. O caminhão aparentando um uniforme nazi-fascista é igualmente curioso.
[9] Em um pequeno documentário contido nos extras do DVD, o roteirista Leo Benvenuti conta que o próprio Sergio Leone parecia assumir esta perspectiva do sonho com a cena do sorriso, tendo em vista uma conversa que teve com o público após uma sessão. Focarei, entretanto, em elementos do próprio filme para refletir sobre esta possibilidade.
[10] Uma característica famosa da parceria entre Leone e Morricone é que a música era composta antes das filmagens, sendo reproduzida em várias das cenas para ditar o ritmo e a emoção do restante da equipe, o que evidencia a prioridade que o diretor sempre deu ao caráter operístico de seus filmes.
[11] É através deste ponto que justifico minha preferência pela versão original, de 229 minutos. Na estendida, as cenas extras estão em consonância com o tom geral do filme e até revelam algumas nuances da trama e dos personagens, mas interrompem a coerência emocional da maioria das sequências onde entram. Um exemplo drástico: há uma cena inserida entre o momento em que Noodles desce do carro e caminha pela praia e na sua chegada à estação onde vê Deborah partir – neste buraco, introduz-se uma passagem sobre a origem do namoro do protagonista com Eve (Darlanne Fluegel). Apesar do bom clima entre os atores e até da justificativa dentro do enredo, há muito mais a ser perdido com a interrupção do sentimento de melancolia que a sequência original nos transmite.

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